Entre saberes e distâncias: medicina e cuidado fora dos grandes centros
- ccconservacao
- 13 de out.
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Atualizado: 14 de out.
Documentos com História
Para completar a história sobre um manuscrito e auto de exame desenvolvida em posts anteriores da série Documentos com História, sigo agora as pistas deixadas no livro manuscrito de medicina do século XIX para reconstruir uma pequena linhagem de praticantes ligados à zona de Coimbra. Enquanto uns foram formados na universidade, outros foram herdeiros de saberes transmitidos pela vontade de partilhar para além da academia, fazendo a ponte com a medicina exercida fora dos grandes centros, neste caso para o interior do Alentejo. Não se trata de ligações diretas nem de heranças traçadas com certezas, mas com certeza de afinidades: três médicos, três tempos, um mesmo compromisso com o saber como forma de cuidado e com a medicina como gesto de proximidade.
Atravessamos quase dois séculos. João Lopes de Morais (1783–1860), professor em Coimbra e autor do livro manuscrito, ditou o texto em 1830, enquanto estava preso por motivações políticas. João Maria Porto (1891–1967), natural de Nisa, Alentejo nascido de pai Barbeiro, não foi sem dificuldade que chegou a ser médico, mas o intelecto alcançou-lhe a posição de diretor da Faculdade de Medicina de Coimbra. Ciente da necessidade de devolver à sociedade, fundou instituições com vocação social e acompanhou de perto a realidade médica do interior. José Rodrigues Estrela (1906–1999), formado em Coimbra, foi aluno de João Porto, incentivado por este exerceu toda a sua vida como médico de vila no Alentejo. A história destes três homens cruza-se aqui como testemunho de uma medicina feita de proximidade, responsabilidade e continuidade.

No livro preservado, uma cópia de 1855, encontramos uma folha avulsa com um auto de exame de sangria de 1844. O dono desta cópia é um barbeiro sangrador de Vaiamonte – filho do examinado no auto. Já nos anos 30 do século seguinte, o manuscrito chega às mãos do Dr. Estrela, possivelmente por via da sua relação com o Dr. Porto que o inspira a voltar ao Alentejo, o documento é por aquele encontrado e guardado até aos nossos dias.
Nalguns documentos preservados há uma memória silenciosa que atravessa décadas: um nome escrito na guarda, uma nota solta, uma inscrição em letra diferente do corpo do texto. Desatualizado do ponto de vista científico, o manuscrito mantém, no entanto, um valor essencial: o de testemunhar a passagem de saberes, de geração em geração, de mão em mão.
João Lopes de Morais (1783–1860): ensinar mesmo preso
Professor de Medicina na Universidade de Coimbra, liberal, maçom e opositor ao regime miguelista, João Lopes de Morais foi preso por motivos ideológicos e religiosos.
Enquanto estava na Prisão da Praça de Almeida, entre 1829 e 1830, ditou um "Esboço da Prática Médica" a alguns curiosos que o acompanhavam. O resultado foi um pequeno manual escrito em português simples, (quando todos os livros de medicina eram ainda escritos em Latim) destinado a barbeiros-sangradores e cirurgiões empíricos, onde descreve o tratamento das moléstias mais comuns, com base na observação e na experiência.
"Foge às causas para evitar as moléstias; goza com moderação e sofre com paciência, porque serás sadio." (Esboço da prática médica, 1855)
A cópia que chegou até mim foi feita em Cabeço de Vide, em 1855, com indícios de uso por barbeiros-sangradores da região.
João Maria Porto (1891–1967): medicina social com raízes no interior

Nascido em Nisa, no Alto Alentejo, João Maria Porto formou-se em Medicina na Universidade de Coimbra em 1919. O seu percurso como professor universitário, pioneiro da eletrocardiografia e diretor dos Hospitais da Universidade de Coimbra foi marcado por um forte empenho na medicina social e na ligação ao interior do país. Fundou o Centro Médico-Social de Coimbra e o Instituto de Cardiologia Social, foi deputado pelo distrito de Portalegre e nunca perdeu o contacto com as suas origens.
Filho de um barbeiro, sabia bem o peso das distâncias no acesso ao conhecimento, à formação e à saúde. A sua prática foi guiada por uma visão moderna da medicina, mas sempre com um olhar voltado para as comunidades, foi mentor das gerações que se lhe seguiram. Em várias terras de Portugal, incluindo na vila de Fronteira, existem ainda hoje ruas com o seu nome. Apoiou outros médicos mais jovens, entre os quais o Dr. Estrela.
José Rodrigues Estrela (1906–1999): o médico de Vaiamonte e Fronteira
Natural de Cabeço de Vide, o Dr. Estrela formou-se em Coimbra e regressou ao Alentejo como médico. Exerceu em Vale de Maceiras, Vaiamonte e Fronteira, onde viria a ser Delegado de Saúde. Foi acolhido e incentivado pelo Dr. João Porto, que lhe ofereceu a sua casa para que se pudesse estabelecer em Fronteira.

Homem próximo da comunidade, era conhecido por estar sempre disponível: a qualquer hora do dia ou da noite batiam-lhe à porta a chamá-lo. E ele ia. Com profundo sentido de serviço, acompanhou gerações de habitantes da região, tornando-se uma figura presente na memória local.
O livro manuscrito do Dr. Lopes de Morais chegou até mim pelas mãos do Dr. Estrela. Não sabemos de certeza se foi herdado quando chegou a Fronteira com a casa e outros livros do Dr. João Porto ou se permaneceu em Vaiamonte desde a sua cópia em 1855, passando de um profissional de saúdo a outro, de barbeiro sangrador a médico. Mas sabemos que foi guardado, valorizado e preservado, não como uma curiosidade, mas como livro de trabalho.
Barbeiros Sangradores de Vaiamonte
Além dos três médicos formados em Coimbra, há também que reconhecer o papel de quem usou este livro no seu quotidiano. Entre os nomes associados ao exemplar destaca-se o de João António Pereira (1823–1888), identificado na folha de guarda como “barbeiro sangrador em Vaiamonte”. A presença do seu nome, juntamente com a indicação do local e da data em que o livro foi copiado – Cabeço de Vide, 1855 – e a qualidade da caligrafia manuscrita, são testemunhos concretos do lugar que estes profissionais ocupavam na sociedade e na saúde das comunidades locais.
O volume está anotado, tem marcas visíveis de uso, e entre as suas páginas foi guardado um auto de exame de 1844 pertencente a outro sangrador de Vaiamonte, Francisco António Pereira (1793-1847). A coincidência de nomes e local levou à consulta de registos paroquiais, que confirmam a relação: Francisco era pai de João, ambos naturais de Campelo (Figueiró dos Vinhos), região pertencente ao distrito de Coimbra, mas já residentes no Alentejo em meados do século XIX. Neste caso, é possível acompanhar com clareza a passagem de saberes, instrumentos e responsabilidades de pai para filho, numa linhagem de barbeiros sangradores que se afirma num território afastado dos centros de formação.
Prova da importância pessoal e profissional deste manuscrito na vida de João António Pereira é o facto de, na mesma folha de guarda, mais abaixo, ter anotado à mão a data da morte da sua mulher, Mariana do Carmo Soeiro, em 1874 – informação que os registos paroquiais completam e confirmam. A coexistência de saber técnico, memória familiar e prática profissional transformam este livro num objeto profundamente enraizado na vida de quem o utilizou. E é precisamente esta circulação fora da academia, entre famílias, territórios e gerações, que reforça o seu valor documental, simbólico e histórico.

Linhas que se cruzam: cuidar, ensinar, partilhar
Entre estes três médicos não há uma linhagem formal, mas há uma coerência de gestos: ensinar para além da academia, aproximar a medicina às comunidades, respeitar os saberes locais e acreditar que o conhecimento deve circular. João Lopes de Morais escreveu para os práticos; João Maria Porto fundou instituições para democratizar o acesso; José Estrela exerceu numa região esquecida, entre freguesias distantes e populações sem acesso a outros cuidados regulares.
A essa linha de continuidade profissional junta-se, de forma distinta, a linhagem familiar dos barbeiros sangradores João e Francisco António Pereira. Ao contrário dos médicos formados, aqui o saber passa de pai para filho, por via da prática, da observação e da transmissão oral e manuscrita. Também eles contribuíram para a circulação e preservação do manuscrito, garantindo que o conhecimento se mantivesse vivo, útil e próximo de quem dele precisava.
A forma como o livro sobreviveu entre todos eles – por afinidade profissional ou por herança direta – é já um caso exemplar de transmissão de saber. Não apenas o saber técnico da medicina, mas o saber maior de quem cuida, ensina e permanece.
Conservar também é reconhecer
No meu trabalho como conservadora-restauradora, dar a conhecer faz parte do cuidar. Este manuscrito de medicina foi-me confiado não apenas como objeto material, mas como fragmento de história e também como testemunho de relações, de circulação e de memória.
O gesto de guardar o livro mesmo quando o seu conteúdo já estava ultrapassado pela modernidade é, por si só, uma forma de reconhecimento. O gesto de o partilhar é assim também um gesto de continuidade. Ao cruzar estas figuras – Morais, Porto, Estrela, e os sangradores da família Pereira – não procuro traçar uma genealogia fechada, mas recuperar uma ideia de medicina que se estende no tempo e no território: feita de saberes partilhados, entre o ensino formal e a experiência prática, entre a universidade e o quotidiano das terras pequenas do interior.
Porque o que se preserva com sentido, permanece. E porque conservar também é reconhecer aqueles que, com os meios de cada época, procuraram transmitir o saber.
Arquivo Distrital de Portalegre. (1888). Óbitos Sto. António de Vaiamonte: Registo de óbito de João António Pereira, p.10 [Imagem digital]. Digitarq. https://digitarq.arquivos.pt/fileViewer/6c2d2edaff8b488fb0e88fd16a622b16?isRepresentation=false&selectedFile=47523745&fileType=IMAGE
Arquivo Distrital de Portalegre. (1837-1859). Óbitos Parochiannos Sto. António de Vaia-monte: Registo de óbito de Francisco António Pereira, p.61 [Imagem digital]. Digitarq. https://digitarq.arquivos.pt/fileViewer/8f33680ef1f4499a9c354ae4f6b46f6f?isRepresentation=false&selectedFile=47523315&fileType=IMAGE






