Entre as mãos e a memória: um livro de medicina manuscrito e o percurso de quem o ditou, usou e guardou
- ccconservacao
- 24 de ago.
- 6 min de leitura
Documentos com História
Há documentos que nos chegam com uma presença discreta, mas que, ao serem preservados, começam a revelar vários níveis de histórias. Este livro manuscrito de medicina, de aspeto modesto, é um desses casos. Nele encontrei o testemunho material de um tempo em que curar era também um gesto de improviso, prática e observação. Quando o conhecimento passava por tradição, de geração em geração.
Ao analisar o conteúdo, as marcas de uso e as inscrições manuscritas, percebi que o seu valor ultrapassava a utilidade médica: trazia consigo uma história pessoal, política e social. Foi possível reconstituir o percurso do exemplar, identificar o seu autor – um médico e professor da Universidade de Coimbra preso por motivos políticos – compreender a intenção com que foi escrito e até relançar uma reflexão sobre a profissão de barbeiro sangrador, que ainda estava viva em muitos territórios rurais portugueses no século XIX.
Este texto faz parte da série Documentos com História, onde partilho fragmentos materiais que cruzam o passado com o presente do meu trabalho. O gesto de os mostrar é, para mim, uma extensão do cuidar: ao dar a conhecer, valorizo aquilo que tantas vezes permanece esquecido e preservo também a sua memória.
Um manuscrito ditado da prisão: medicina para quem cuida, não para quem manda
No final da década de 1820, o professor João Lopes de Moraes era médico e lente na Universidade de Coimbra, mas foi perseguido pela Junta Expurgatória criada durante o reinado de D. Miguel e no seguimento das tensões entre Absolutistas e Liberais. O Dr. Lopes de Moraes, foi acusado de professar ideias liberais e de ter “opiniões livres em matéria religiosa”. Em consequência disso foi detido em 1829 como preso político na Praça de Almeida, onde terá ditado o conteúdo deste livro.
O título não deixa margem para dúvidas quanto à intenção:
“Esboço da Prática Médica, ou breve ensaio do tratamento das moléstias mais ordinárias, ditado da Praça d’Almeida nos meses de Janeiro de 1829 para 1830 pelo Doutor João Lopes de Moraes, Demonstrador de Matéria Médica na Universidade de Coimbra”

Trata-se de um pequeno compêndio de medicina prática, escrito em português, destinado a leigos e profissionais populares de saúde, como cirurgiões e barbeiros sangradores. Numa época em que os manuais de medicina eram redigidos em latim e reservados aos círculos académicos, este gesto de partilha direta de conhecimento com “curiosos”, como o próprio autor lhes chama, é tanto político como pedagógico.
“Estas opiniões foram acolhidas ao acaso e a sua colecção deu lugar a um pequeno relatório de moléstias e seu tratamento, segundo o estado actual da Medicina...”
Foi ditado na prisão, copiado pelos curiosos, e circulou à margem de circuitos editoriais e universitários. O seu conteúdo é direto, organizado em cinquenta pequenos capítulos sobre diferentes moléstias, com um índice no final. O livro que chegou até nós é uma cópia manuscrita, feita em Cabeço de Vide em 1855, duas décadas após a redacção original. Foi propriedade de João António Pereira, barbeiro sangrador residente em Vaiamonte, como o registo da folha de guarda atesta:
“Este Livro he de João António Pereira Barbeiro Sangrador em Vaia monte. Foi feito em Cabeço de Vide em 1855.”

Dentro do volume, está ainda guardado um documento avulso, um auto de exame de sangria em nome de Francisco António Pereira, também de Vaiamonte. A coincidência dos apelidos e da localidade sugere laço familiar e ajuda a reconstituir o percurso e forma de passagem ou herança de conhecimento e profissão: de barbeiro para barbeiro, de pai para filho, até chegar, mais tarde, às mãos de um médico formado na Universidade de Coimbra, cujo primeiro posto de trabalho terá sido precisamente em Vaiamonte.
Mais do que um manual, este é um livro de trabalho. Nas folhas de guarda, há notas, riscos e apontamentos. As 50 moléstias tratadas estão organizadas em capítulos curtos, com conselhos simples, fórmulas práticas e advertências sobre a preparação e o uso de medicamentos. A linguagem é clara, ainda que por vezes tecnicamente rigorosa. A introdução apresenta-se como um pequeno manifesto, que resume bem a posição do autor:
“Não é porém uma prática empírica a do presente esboço, tudo é fundado em princípios verificados pela experiência e observação, as duas únicas molas em que se deve fundar todo o sistema da Medicina.”
E termina com um conselho direto, que ecoa até aos nossos dias:
“Foge às causas para evitar as moléstias; goza com moderação e sofre com paciência, porque serás sadio.”

Este livro manuscrito é mais do que um testemunho raro da medicina popular portuguesa do século XIX. É a prova de que o saber circulava fora dos hospitais, fora das universidades, fora dos tratados impressos. Circulava nas mãos calejadas dos barbeiros e cirurgiões, passava de pai para filho, de mestre para aprendiz. E nasceu, ironicamente, entre as paredes de uma prisão.
João Lopes de Morais (1783–1860): um professor entre a ciência e a liberdade
Natural da Gândara, na atual freguesia de Mortágua, João Lopes de Morais destacou-se como médico, professor universitário e figura liberal de pensamento independente, num dos períodos mais conturbados da história portuguesa. A sua vida espelha a tensão entre ciência, religião e política, numa época em que o ensino superior era também palco de confrontos ideológicos.
Formado em Medicina pela Universidade de Coimbra, João Lopes de Morais rapidamente se afirmou como um dos mais distintos membros da Faculdade. O seu mérito académico era reconhecido mesmo pelos seus opositores: em 1824, a Junta Expurgatória da Universidade – criada durante o regime absolutista de D. Miguel I para afastar elementos indesejáveis – classificou-o como um dos professores mais capazes da sua geração. Ainda assim, propôs a sua exclusão com base em acusações de irreligiosidade, alegando que em Mortágua era tido por “ímpio” e defensor de “opiniões livres em assuntos religiosos”.
A decisão de o afastar da Universidade pela Junta, foi tomada por pluralidade de votos, e não por unanimidade, revelando a controvérsia e o peso do seu prestígio científico. À acusação de irreligiosidade somava-se o facto de ser membro da loja maçónica “Filadélfia”, o que agravava, aos olhos do regime, o seu perfil liberal. Acabaria por ser exonerado do cargo de professor.
Assim, foi preso por motivos políticos e esteve detido na Praça de Almeida em 1829, passando em 1832 para Lamego (não verificado) onde permaneceu encarcerado até março de 1833.
A Praça-forte de Almeida, uma imponente fortificação na fronteira, foi usada como prisão militar e política para opositores liberais – médicos, estudantes, jornalistas e militares que se opunham ao absolutismo.
Com o triunfo liberal em 1834 e a restauração da ordem constitucional, o Dr. João Lopes de Morais foi reintegrado na Universidade de Coimbra. O repositório da Universidade, atualmente acessível online, mostra que entre 1835 e 1845, assinou diversas teses na Faculdade de Medicina, deixando testemunho da sua continuidade académica e da sua recuperação institucional.
O Dr. Lopes de Morais escreveu também sobre política e outros temas sociais. Foi editor do periódico Opposição Nacional, criado por iniciativa do partido progressista da cidade, em 1844, como resposta à revolução popular de Coimbra de 8 de Março do mesmo ano. Fez parte da Junta Governativa de Coimbra em 1846.
É jubilado por decreto da Universidade e 1855, vindo a falecer em 1860. A sua memória é hoje celebrada na sua terra natal, onde dá nome à Escola Básica João Lopes de Morais, em Mortágua – uma justa homenagem a quem dedicou a vida à ciência, à liberdade de pensamento e ao serviço público, mesmo em tempos de repressão.

Valor histórico e material do manuscrito
O exemplar aqui apresentado é simultaneamente testemunho de:
Um documento de transmissão de saber empírico e formal;
Um testemunho da medicina feita fora dos centros universitários;
Um vestígio da circulação manuscrita de conhecimento técnico;
Uma peça-chave para compreender o valor social da profissão de barbeiro sangrador;
Uma prova da resistência do autor, que mesmo preso, continuou a ensinar e a escrever.
Este não é um documento para ficar esquecido numa prateleira. É um documento que pede para ser visto, lido, compreendido no seu tempo e no seu uso. Quando me chegou às mãos trouxe com ele esta história. E, ao partilhá-la, cuido também dela.
Eu não procuro apenas fixar um dado histórico, mas reconhecer a inteligência que passa de mão em mão, de geração em geração. É esse gesto de partilha, e não apenas a preservação física, que ajudou a conservar e trazer este documento até aos nossos dias.
Este texto complementa e prolonga o post anterior desta série, onde apresentei o "auto de exame de sangria" de 1844, refletindo sobre o papel da profissão de barbeiro-sangrador e o valor de documentos que testemunham a prática da medicina popular. Mais à frente será publicado outro post sobre as pessoas que se conhece tiveram ligação com este livro. Em conjunto, os três posts contribuem para iluminar um quotidiano de saberes médicos informais, quase sempre ausente dos registos oficiais.
Porque conservar não é só tratar da matéria, do objeto. É também dar visibilidade, com tempo e com contexto, aquilo que o esquecimento ameaça apagar.

Referências consultadas
Martins de Carvalho, J. (1868). Apontamentos para a historia contemporanea. Coimbra: Imprensa da Universidade. https://archive.org/details/apontamentospara00mart/
Moreira, V., & Domingues, J. (2023). A contrarrevolução antiliberal de 1823: A vindicta absolutista contra o sistema político-constitucional vintista. Universidade Lusíada. https://doi.org/10.34628/a57t-nn72
Universidade de Coimbra. (s.d.). João Lopes de Morais. História da Ciência na UC. https://www.uc.pt/org/historia_ciencia_na_uc/autores/MORAIS_joaolopes






