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Memórias e Histórias

Coleções retocadas – a Foto-Estefânia: Retoque, a Fotografia de Bairro e o Glamour do Cinema

  • ccconservacao
  • 21 de jul.
  • 7 min de leitura

Atualizado: 22 de jul.

Entre os muitos gestos invisíveis da fotografia de estúdio, o retoque ocupa um lugar particular: foi prática corrente, pouco documentada, raramente valorizada. O terceiro texto da série “Coleções retocadas” é dedicado ao estúdio Foto-Estefânia, um pequeno estúdio de bairro lisboeta da primeira metade do século XX, cuja coleção – hoje na LUPA – permite observar uma viragem importante na estética do retrato.


Ao longo da análise de várias coleções de negativos, foi na Foto-Estefânia que se tornou mais evidente a transição para uma nova linguagem visual. A presença de retoques sistemáticos na linha da cana do nariz, ausentes em retratos anteriores, revela a tentativa de simular a iluminação artificial descendente típica do cinema da época. Este detalhe técnico, repetido e intencional, indica mais do que uma correção: mostra que a luz e a pose já seguem modelos do retrato cinematográfico.


A partir dos anos 1920, o cinema impõe-se como referência de gosto e modelo visual. O retrato de estúdio, mesmo nos bairros, adapta-se a essa estética: poses anguladas, iluminação composta, fundos esbatidos, encenação subtil. O retrato deixa de se inspirar na pintura – passa a olhar para a própria fotografia e para o rosto das estrelas de Hollywood.


No texto, exploramos também a relação entre esta estética moderna e exemplos documentados, nomeadamente nos retratos de artistas pelo fotógrafo Silva Nogueira e no trabalho de George Hurrell, fotógrafo de referência no glamour cinematográfico, cuja influência se estendeu internacionalmente à fotografia comercial.


A coleção Foto-Estefânia pode ser modesta em número, mas contém uma chave essencial para compreender como o gosto muda – e como o retoque o acompanha. É no detalhe técnico que se revela uma viragem cultural.

 

Detalhe de retrato de pianista encostada ao piano, com retoque a tinta no pescoço
Detalhe de retrato de pianista encostada ao piano, com retoque a tinta no pescoço

A imagem muda: luz, gosto e modernidade

A coleção Foto-Estefânia é composta por 71 negativos de vidro, gelatina e sais de prata (18×24 cm), provenientes de um antigo estúdio de bairro na zona da Estefânia, em Lisboa. Atualmente à guarda da empresa LUPA – Luís Pavão Lda. O conjunto chegou acompanhado por um pupitre (mesa de retoque), outros materiais técnicos e testemunhos do último proprietário.


É nesta coleção que se torna particularmente evidente uma transformação que, embora presente noutras, aqui se reconhece com nitidez: a influência do cinema e da fotografia moderna na construção da imagem. O retoque na linha da cana do nariz – gesto ausente nos retratos anteriores – permite identificar a tentativa de simular a iluminação artificial descendente usada no retrato de Hollywood.


Este detalhe, isolado, pode parecer insignificante. Mas foi precisamente no conjunto das coleções estudadas, e pela repetição desse gesto na Foto-Estefânia, que se tornou possível estabelecer uma correspondência entre o retoque e a evolução da estética visual. O gosto muda. E com ele mudam também os gestos técnicos, os ideais de beleza e a forma como o rosto é representado. O cinema, e a própria fotografia, passam a ser referências visuais de si mesmas.


Retrato comercial e continuidade de gestos

Os negativos da Foto-Estefânia apresentam, numa grande proporção, retratos de busto ou meio corpo. O fundo é neutro, com gradação tonal ou vinheta. A iluminação é lateral, com modelação suave do rosto. As composições são simples, com atenção à nitidez e ao equilíbrio visual.


Este tipo de retrato corresponde a uma produção comercial orientada por critérios de eficácia e repetição. As imagens destinavam-se a provas fotográficas em papel, frequentemente utilizadas em contextos familiares ou formais. A qualidade técnica dos negativos, o uso sistemático de retoque e a organização do trabalho indicam uma prática consolidada.


Apesar da aparente simplicidade, os retratos revelam continuidades técnicas e, ao mesmo tempo, sinais de mudança: nos gestos aplicados ao negativo, nos efeitos pretendidos e na adaptação a novos ideais visuais.



Gesto técnico: materiais e métodos

A análise dos negativos revelou a presença sistemática de retoques manuais realizados com diferentes materiais e técnicas. Foram identificados, com base nas marcas deixadas nos negativos, nos materiais e utensílios sobreviventes e nos testemunhos orais do último proprietário, os seguintes procedimentos:


  • Aplicação de um verniz que servia de base para o retoque a grafite. Ao contrário do que era mais comum, em vez de um verniz preparado com resina Damar, sobrevive uma mistura de óleo de linhaça e terebentina, que era aplicada engenhosamente com um frasco roll-on;


  • Retoque com lápis de grafite, era usado numa variedade de padrões: manchas esbatidas, pontilhados, vírgulas e reticulados. Estes padrões criam interferências visuais, aplicadas em zonas específicas para remover rugas, uniformizar e suavizar a pele. O lápis também era usado mais linearmente para realçar contornos, endireitar bigodes e corrigir cabelos desalinhados;


  • Uso de corantes vermelhos secos, aplicados com o dedo (maquilhagem), para clarear zonas como rosto e mãos, compensando limitações das emulsões fotográficas, que traduziam o rosado da pele em tons excessivamente escuros;


  • Retoque com nova cocim líquida (um corante vermelho artificial, muito estável à luz e com alto poder de cobertura), aplicada com pincel. A sua intensidade e saturação permitiam não só clarear, mas também, mediante mais ou menos diluição, apagar partes indesejadas da imagem ou isolar uma figura num retrato de grupo para posterior ampliação em retrato individual;


  • Grattage pontual, ou raspagem da emulsão com estilete ou lâmina, era usada para criar linhas finas, reduzir densidade ou ajustar traços fisionómicos de acordo com os padrões de beleza da época. Foram identificadas correções em lábios, narizes e contornos de queixo e pescoço;


  • Uso ocasional de máscaras de cartolina, aplicadas para isolar áreas durante a impressão. Algumas sugerem a intenção de remover fundos – ora para deixá-los em branco, ora para substituí-los por outros fundos alternativos.


O pupitre de retoque preservado é um modelo típico do século XIX. Já sem o vidro translúcido que apoiaria o negativo, apresenta uma estrutura em Z com pala superior, permitindo a observação com luz traseira e o trabalho sob iluminação controlada. Esta mesa, juntamente com os materiais associados e os testemunhos recolhidos, constitui uma base documental importante para a reconstrução dos gestos técnicos envolvidos no retoque fotográfico neste contexto.



O glamour iluminado: cinema e cultura visual

Os negativos do estúdio Foto-Estefânia, embora discretos em escala, testemunham uma transformação ampla nas linguagens do retrato fotográfico a partir das décadas de 1920 e 1930. Um dos indícios mais claros dessa mudança é a presença de retoque na linha da cana do nariz – com corante vermelho que resulta numa linha branca no positivo – um gesto técnico ausente nas coleções mais antigas e que simula a incidência descendente de luz artificial sobre o centro do rosto. Este efeito não é apenas uma correção: é a construção deliberada de um tipo de iluminação, herdada diretamente do cinema da época.



Com o entre-guerras, o cinema afirma-se como linguagem visual dominante e passa a influenciar diretamente a estética do retrato de estúdio. A pose e a luz já não seguem os cânones da pintura ou os retratos de gabinete. Desenvolve-se um novo código visual, marcado por rostos moldados em contraste, poses anguladas ou de perfil, olhares dirigidos em diagonal, fundos esbatidos, maquilhagem intensa e um cuidado particular com a encenação da figura – tal como nas revistas ilustradas e cartazes promocionais das estrelas do cinema.


Esta transformação é visível em práticas de estúdio como as da Foto-Estefânia, mas também encontra expressão mais explícita em retratos de figuras públicas da época. Um exemplo relevante é o fotógrafo português Silva Nogueira (1892–1959), cuja obra inclui retratos de atores e atrizes como Luísa Satanela e Brunilde Júdice, ambos claramente inspirados em modelos internacionais:


  • A fotografia de Luísa Satanela reproduz uma pose célebre da artista Josephine Baker, captada por Walery, pai e filho, de origem polaca ativos em Paris e Londres, mas conhecido e publicado também em Portugal, associado à construção de uma imagem exótica e sofisticada;


  • Já o retrato de Brunilde Júdice evoca a estética de retratos conhecidos de Joan Crawford, nomeadamente o retrato realizado por Edward Steichen para a Vanity Fair, onde a encenação minimalista geométrica, a iluminação lateral, o negro que apaga o corpo e ressalta as mãos e a face, o olhar fixo e o penteado em ondas são cuidadosamente coreografados.



A própria fotografia torna-se o modelo. Já não é a pintura que fornece legitimidade estética – é o próprio retrato fotográfico, sobretudo o retrato de celebridades, que passa a ser a referência. A imagem torna-se autocitada, alimentada por revistas ilustradas, estúdios de cinema e práticas comerciais transnacionais.



No contexto americano, essa estética atinge o seu auge com a obra de George Hurrell (1904-1992), fotógrafo de Hollywood que criou imagens icónicas de atores como Joan Crawford, Clark Gable ou Greta Garbo. Hurrell utilizava iluminação artificial dramática com um foco superior montado num braço telescópico (boom light), que criava precisamente a linha de luz ao longo da cana do nariz. Hurrell também foi conhecido pelo trabalho meticuloso de retoque, tanto no negativo como na prova, criando rostos esculpidos em luz e sombra, moldando peles homogéneas quase de cerâmica e expressões encenadas. Na era de ouro do cinema, particularmente no ideal feminino, a marca visual do glamour cinematográfico era um rosto que transmitia, acima de tudo, a perfeição.


Esta linguagem ultrapassou o universo das estrelas. Foi apropriada por estúdios comerciais, urbanos e suburbanos, que procuraram emular esse efeito de prestígio, modernidade e idealização. A Foto-Estefânia é uma dessas faces possíveis – discreta, anónima, mas reveladora da forma como a cultura visual moderna chegou, também, à fotografia de retrato mais popular.


Técnica e património: o valor de um gesto

O estudo da coleção Foto-Estefânia, embora centrado num conjunto reduzido de negativos, permite observar com clareza a persistência de gestos técnicos que, na maioria dos arquivos, permanecem invisíveis. A associação entre imagem, material e testemunho torna possível documentar e compreender o retoque como uma prática que foi central na produção fotográfica durante décadas, mas que raramente deixou registo escrito ou reconhecimento institucional.


Caixas de negativos, pupitre e outros materiais da coleção Foto-Estefânia
Caixas de negativos, pupitre e outros materiais da coleção Foto-Estefânia

O retoque, como se mostra neste caso, é parte do processo fotográfico. Não apenas como correção, mas como etapa integrante da construção da imagem final. As marcas deixadas nos negativos, os instrumentos utilizados, o posicionamento do corpo diante da câmara, a luz escolhida e o acabamento da prova são elementos indissociáveis de uma prática técnica, comercial e cultural que moldou a forma como os rostos foram vistos e guardados na memória fotográfica do século XX.


Agradecimentos

Agradeço ao Luís Pavão pelo acesso à coleção Foto-Estefânia e aos materiais técnicos preservados pela empresa LUPA – Luís Pavão Lda.. Foi ele quem, em 2009, me incentivou a estudar o tema do retoque, no contexto de uma colaboração inicial, que resultou no artigo:


Pereira, C. (2010). O retoque do negativo fotográfico – estudo de uma coleção do Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de Lisboa. ECR – Estudos de Conservação e Restauro, 2, 38–57. https://doi.org/10.34618/ecr.2.3153


Pro ter partilhado o seu conhecimento técnico, pela disponibilidade e generosidade que foram fundamentais para o desenvolvimento da investigação e para o reconhecimento do retoque como património fotográfico.


Imagem da atriz Luísa Satanela, cortesia de Paulo Baptista.


👉 O próximo texto da série será uma reflexão transversal:“Verdade e vaidade no retrato de estúdio – o retrato como construção social e relação cliente-fotógrafo-retocador”

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