Os retratos da conspiração republicana: três negativos da Foto-Carvalho
- ccconservacao
- 12 de set.
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Atualizado: 13 de set.
Documentos com História
Três negativos partidos, sem inscrição nem identificação, guardavam um segredo improvável. Entre milhares de retratos de família da Foto-Carvalho, em Estremoz, escondiam-se os rostos de três protagonistas da conspiração republicana: Machado Santos, Luz Almeida e António Maria da Silva. Como chegaram ali? E por que razão estes retratos, feitos em grande formato, sobreviveram quando outros se perderam?
Arquivos como lugares de descoberta
Os arquivos fotográficos são muitas vezes lugares discretos, silenciosos, em que a história se esconde em pequenos fragmentos de vidro ou película. A cada gaveta, cada caixa aberta, nunca sabemos bem o que pode surgir: retratos de família, momentos quotidianos, imagens de cerimónias, ou, por vezes, surpresas que ligam um estúdio local a acontecimentos de escala nacional.
No meu trabalho de conservação e restauro tenho aprendido que preservar é também descobrir. Ao limpar, estabilizar ou simplesmente observar um objeto, há sempre espaço para a investigação e para a surpresa. Foi o que aconteceu quando descobri entre gavetas de negativos, da Foto-Carvalho estúdio que se fixou em Estremoz a partir da década de 1930, fragmentos de vidro que viriam a revelar-se como três negativos de grande formato, praticamente completos.

À primeira vista, eram apenas fragmentos empoeirados, frágeis, sem qualquer inscrição que pudesse orientar a identificação. Mas ao montar os puzzles revelaram-se três retratos que iriam ligar Estremoz a Lisboa, o passado de um estúdio local a redes maçónicas e conspirativas, e um conjunto de negativos regionais à própria fundação da República Portuguesa.
A descoberta – negativos partidos e a primeira pista
Os negativos estavam em mau estado: partidos, com sujidades e faltas, exigindo cuidados de manuseamento e melhor acondicionamento. Nada neles indicava o nome do retratado ou a data da sessão. Apenas a imagem, silenciosa, restava como pista.
Ao olhar para o primeiro, porém, percebi imediatamente que não se tratava de um retrato banal. O enquadramento era pouco comum: uma figura masculina com uniforme de oficial, de corpo inteiro, sentada de forma inclinada, com o cotovelo apoiado sobre uma mesa de trabalho coberta de livros e outros objetos. Não era a pose típica dos retratos de estúdio de finais do século XIX e inícios do XX, que repetiam as mesmas poses e gestos. Aqui havia encenação, composição cuidada, uma intenção.
O uniforme militar era a pista mais valiosa. A postura e o cenário sugeriam tratar-se de alguém que não posava apenas para ter a sua fotografia de recordação: tratava-se de uma figura pública, com consciência do peso da imagem.
A identificação – um rosto conhecido passa a três
Depois de identificar a patente do militar, foi um momento de reconhecimento directo. Aquele retrato apareceu imediatamente na pesquisa: correspondia precisamente à imagem mais divulgada de António Machado Santos, o “Herói da Rotunda”. Uma rápida verificação levou à confirmação: era o mesmo retrato reproduzido no frontispício da primeira edição do seu livro A Revolução Portuguesa 1907–1910, publicado em 1911.
A primeira identificação foi chave para chegar a quem estava nas outras duas chapas de vidro. Ao procurar referências, encontrei a página da Wikipédia sobre a Alta Venda, na imagem de rosto lá estavam lado a lado os retratos de Machado Santos, Luz Almeida e António Maria da Silva, a mesma imagem aparece no mesmo livro. Os negativos que eu tinha nas mãos correspondiam exatamente a essas três figuras, mas separados, cada um no seu retrato cada um na sua chapa.

Embora mais convencionais – meio tronco, pose torcida – os dois outros retratos eram suficientemente característicos para não deixar dúvidas. O tipo de nó da gravata, o feitio do colarinho, a fisionomia e até a maneira como se apresentavam confirmavam a correspondência.
Assim, três negativos partidos, aparentemente anónimos, revelaram-se retratos individuais de três membros da Alta Venda da Carbonária Portuguesa.
A Foto-Carvalho: de Alcântara a Estremoz

A Foto-Carvalho começa em Lisboa, no bairro de Alcântara, no primeiro andar da Rua Gilberto Rola nº. 67. O fotógrafo Teodósio de Carvalho – ou Theodósio, como também aparece escrito – tinha ali o seu estúdio nas primeiras décadas do século XX. Conhecido no meio maçónico pelo nome simbólico “Daguerre”, Teodósio era mais do que um retratista de bairro. Um par das suas imagens aparecem inclusivamente publicadas na revista Illustração Portuguesa. O facto de estar ligado à maçonaria e de se mover em redes de confiança que cruzavam o espaço político e conspirativo da época explica por que motivo a sua clientela incluía figuras relevantes da luta republicana.


A vida leva-o a mudar-se para o interior e, na segunda metade dos anos 30, são os seus filhos, Rogério e Beatriz Alda de Carvalho, que herdam o novo estúdio em Estremoz.
Enquanto Rogério assume o trabalho de fotógrafo a sua irmã faz a gestão e será a diretora da casa. Foi em Estremoz que o nome Foto-Carvalho se consolidou como referência local e regional, produzindo milhares de retratos em vidro e mais tarde em película, até ao século XXI. O estúdio acompanhava casamentos, batizados, retratos familiares e profissionais, festas e feiras, fixando no negativo a vida de uma comunidade.
Do arquivo que chegou até nós, agora propriedade dos Estúdios Correia, sobreviveram sobretudo os negativos feitos em Estremoz. Mas no meio desse conjunto homogéneo há uma exceção notável: três negativos de grande formato (24x32 cm), claramente anteriores à atividade no Alentejo. São os retratos de Machado Santos, Luz Almeida e António Maria da Silva – três nomes que pertencem à história da Alta Venda, a cúpula da Carbonária Portuguesa e à história da República Portuguesa.
O simples facto de esses negativos terem sobrevivido, quando nada mais se conserva do período lisboeta do estúdio, já diz muito. Os fotógrafos, pai e filho, atribuíram-lhes uma importância excecional. Mantiveram-nos com o restante espólio, conscientes de que aquelas imagens representavam mais do que rostos: eram símbolos de um tempo de luta e transformação.
A Alta Venda e os retratados
Para compreender o peso destas imagens, é preciso recordar o que foi a Alta Venda. No seio da Carbonária Portuguesa, uma organização secreta inspirada nos modelos italianos e decisiva na conspiração contra a monarquia, a Alta Venda funcionava como órgão máximo de decisão. Era composta pelo Grão-Mestre e alguns membros escolhidos, e assumia a direção estratégica das ações revolucionárias.
Entre os nomes que integraram essa estrutura entre 1909 e 1911 estão justamente os três que aparecem nos negativos da Foto-Carvalho:
Machado Santos (1875–1921), representante da Alta venda (poder executivo), oficial da Marinha, tornou-se figura histórica como o “Herói da Rotunda”, como lhe chamaram na imprensa da época, pelo seu papel na Implantação da República a 5 de Outubro de 1910. Foi ele quem comandou os republicanos na Rotunda (hoje Praça do Marquês de Pombal), resistindo ao cerco e garantindo a vitória. Em 1911 publicou A Revolução Portuguesa 1907–1910, livro fundamental para a memória da República, onde a sua fotografia surge no frontispício; precisamente a imagem que sobrevive no negativo da Foto-Carvalho.
Luz Almeida (1867–1939), Grão-Mestre da Alta Venda, arquivista-bibliotecário e ativista político, foi o grande dirigente da Carbonária em várias formações e conspirador incansável mesmo no exílio. A sua influência atravessava fronteiras e a sua figura era central nas redes secretas que prepararam a queda da monarquia.
António Maria da Silva (1872–1950), representante da Venda Jovem Portugal, engenheiro de minas, militante republicano desde cedo, participou nas conspirações carbonárias e foi deputado logo em 1911. Tornar-se-ia uma das figuras políticas mais persistentes da Primeira República, chegando a ocupar várias vezes o cargo de Presidente do Ministério, sendo o último chefe de governo antes do golpe militar de 1926.
Três trajetórias distintas, mas convergentes: todos estiveram ligados à conspiração republicana, à maçonaria e à Alta Venda. E todos deixaram o seu rosto registado em negativos preservados por um fotógrafo que partilhava dessas mesmas redes de confiança.
O estúdio como espaço de confiança e retórica da imagem
A fotografia de estúdio tinha uma dimensão muito particular na viragem do século XX. Não se tratava apenas de obter um retrato; era um ritual social, um momento de exposição e de construção de identidade. O espaço do estúdio era controlado: o fundo, os adereços, a iluminação, a postura dirigida pelo fotógrafo. Tudo se passava num ambiente íntimo, quase confidencial.
Quando figuras ligadas a conspirações políticas procuravam um retratista, a escolha não era neutra. Era necessário confiar no fotógrafo, tanto pela sua discrição como pela qualidade do trabalho. Há uma lógica no facto de Machado Santos, Luz Almeida e António Maria da Silva recorrerem a Teodósio de Carvalho: todos partilhavam da mesma pertença maçónica, e este conhecia as regras do silêncio e da lealdade.
A escolha do formato 24x32 cm, maior do que os retratos de estúdio mais comuns, reforça ainda mais a ideia de importância. Estes negativos não foram feitos apenas para uso imediato; eram documentos destinados a durar, a ser impressos e reproduzidos em diferentes contextos.
A fotografia, nestes casos, não era apenas memória privada. Era também retórica pública. Num tempo de instabilidade política, em que o poder se disputava tanto nas ruas como nas assembleias, o retrato fotográfico ajudava a construir a imagem pública dos protagonistas.
Os três negativos mostram homens em pose estudada, apresentando-se com a solenidade que a época exigia. Cada detalhe é pensado para transmitir firmeza, respeitabilidade e confiança. A linguagem visual do retrato serve aqui para afirmar presença e estatuto político, funcionando como símbolo de legitimidade e autoridade.

No caso de Machado Santos, porém, a encenação vai mais longe. Sobre a mesa dispõem-se pilhas de livros, mas apenas quatro revelam a lombada com o título e só um se ergue na vertical, estrategicamente enquadrado pelo braço que sustém o cotovelo. Nele distingue-se o busto de Camões e o seu nome – um apelo direto ao poeta-símbolo da pátria e à grandeza de um passado que a República pretendia renovar. A identificação exata desse volume confirma a intenção: trata-se de Luiz de Camões. Romance histórico (1901), de António de Campos Júnior, publicado pela Typographia da Empreza do Jornal O Século. Não é uma edição erudita, mas uma narrativa patriótica destinada a um público amplo, que popularizou a vida do poeta e o inscreveu no imaginário republicano, , apropriado para um herói de conspiração que queria falar ao país inteiro.
Detalhes do retrato de Machado Santos, mostrando uma esfera armilar sobre a mesa e outro onde aparece o livro Luiz de Camões; à direita capa do livro que aparece na imagem da autoria de António de Campos Júnior.
Outro volume que se consegue identificar, à esquerda da imagem, é um dicionário Português-Francês, pelo autor José Inácio Roquete, que fica cortado na imagem impressa, mas visível no negativo original, evoca a França como modelo de república e de cultura laica, ao mesmo tempo que sugere cosmopolitismo e abertura ao mundo. Nada é casual: a mesa transforma-se em palco e cada lombada visível torna-se argumento.
Entre os objetos sobre a secretária, destaca-se ainda uma esfera armilar, acrescentando nova camada de significados. Símbolo nacional por excelência, remete para a epopeia dos Descobrimentos e para a bandeira da Primeira República, onde foi incorporada como sinal de continuidade entre o passado marítimo e a nova ordem política. É também uma referência camoniana, dialogando com o livro na mesa, e um emblema ligado à navegação e à ciência, uma afinidade natural para um oficial da Marinha. Para o olhar maçónico ou carbonário, podia ainda sugerir harmonia do cosmos e universalidade do saber. Ao lado de Camões e do dicionário, a esfera armilar acrescenta a dimensão do mundo, fazendo do retrato não apenas um manifesto político mas também uma afirmação de destino nacional.
Esta disposição calculada dialoga com a própria biografia do retratado – Machado Santos, membro da Alta Venda da Carbonária. O jogo de livros escolhidos: Camões, a França, o saber, traduz visualmente os ideais republicanos e maçónicos de luz, razão e universalidade. Assim, o retrato deixa de ser simples documento para se converter em manifesto silencioso, onde a farda militar se alia ao livro e a espada à palavra.
(ainda me falta identificar os dois outros volumes com a lombada visível e o que mais adicionam à simbologia)
Se o retrato de Machado Santos é mais invulgar e dotado de maior simbolismo, os outros dois por si só não parecem especiais, mas quando comparados com outras imagens conhecidas dos mesmos, nota-se uma constância no estilo da roupa, colarinhos e laços, que transforma cada imagem de um simples retrato num ícone.
O estúdio funcionava, pois, como prolongamento da tribuna. Tal como um discurso num pódio político ou um artigo num jornal, o retrato era também uma forma de intervir no espaço público. E quando esses retratos eram feitos por alguém de dentro das redes maçónicas e conspirativas, a imagem ganha ainda mais densidade simbólica.
Da conspiração à memória preservada
Hoje, mais de um século depois, estes negativos sobrevivem no espólio da Foto-Carvalho em Estremoz. À primeira vista, confundem-se com retratos de outras épocas e pessoas. Mas são, na verdade, peças que ligam a história local à história nacional.
Eles testemunham a passagem de um estúdio de Lisboa para Estremoz, a continuidade de uma família de fotógrafos, a ligação entre fotografia e maçonaria, e a forma como a imagem foi usada como instrumento político.
A sobrevivência seletiva destes três negativos – únicos remanescentes do período lisboeta do estúdio – mostra a importância que lhes foi atribuída. Não são apenas fotografias: são documentos de uma rede de confiança, de uma conspiração e de um tempo.
Por ironia, já no século XXI, estes negativos sobreviveram precisamente porque não lhes foi reconhecido valor. O espólio da Foto-Carvalho foi sendo delapidado por familiares, amigos ou curiosos, que guardaram para si fotografias de família, equipamentos e imagens mais facilmente identificáveis da produção em Estremoz. Perdeu-se, por exemplo, a mesa de retoque, levada sem que quem a retirou percebesse a sua função ou importância, acabando por a deitar fora. Mas estes negativos permaneceram: partidos, sem inscrição, sem rosto identificado – e por isso ignorados e por isso salvos até chegarem aqui..
Preservar é descobrir e dar a conhecer
Os negativos de Machado Santos, Luz Almeida e António Maria da Silva, preservados no espólio da Foto-Carvalho, mostram como a fotografia pode unir mundos aparentemente distantes: conspiradores republicanos, maçons, um fotógrafo de Alcântara, um estúdio em Estremoz, e hoje, a investigação que redescobre essas ligações.
Estes negativos recordam-nos que a memória coletiva é construída tanto pelo gesto político como pelo gesto de conservar. A conspiração que derrubou a monarquia viveu-se nas ruas, nas sociedades secretas, nas páginas de jornais, mas também ficou gravada no vidro de uma câmara escura.
Ao olharmos hoje para estes negativos, compreendemos que no interior de uma gaveta ou de uma caixa de arquivo pode estar um elo essencial da história de um país. Conservar é afinal também descobrir, interpretar, revelar, e dar a conhecer as histórias que se escondem nestes documentos.
Ao mostrar estas imagens e contar os seus percursos a história fica mais rica, mais completa, ganha nova voz. E assim, entre fragmentos de vidro partido, encontramos a memória intacta de um país em mudança.
Este episódio vem juntar-se a outras histórias já reveladas a partir do mesmo arquivo. Na série Coleções retocadas, no texto “Foto-Carvalho – Retrato, Retocadora e Identidade Local”, explorei a prática do retoque no estúdio de Estremoz e a forma como o trabalho da retocadora marcou a identidade local. Os três negativos da Alta Venda acrescentam agora outra dimensão a essa narrativa: mostram como, num mesmo arquivo, podem coexistir a memória íntima de uma comunidade e o registo inesperado de protagonistas da história nacional.
Referências
Campos Júnior, A. de. (1901). Luiz de Camões: Romance histórico (2 vols.). Lisboa: Typographia da Empreza do Jornal O Século.
Roquete, J. I. (1887). Nouveau dictionnaire portugais-français [Português]. Paris: Guillard, Aillaud et Cia.
Santos, A. M. de A. M. (1911). A revolução portugueza, 1907-1910: Relatório de Machado Santos. Lisboa: Papelaria e Tipografia Liberty.
Theodosio de Carvalho - imagem - Almoço dos sargentos da escola prática de infantaria de Mafra realisado no hotel Costa em Cintra. Illustração Portugueza. (1913, 21 de julho). Nº 387, p. 92. Lisboa. obtido da Hemeroteca Digital da Câmara Municipal de Lisboa: https://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/OBRAS/IlustracaoPort/IlustracaoPortuguesa.htm
Wikipédia. (s.d.). Alta-Venda. In Wikipédia. Recuperado em 27 de agosto de 2025, de https://pt.wikipedia.org/wiki/Alta-Venda
Se fores a Estremoz, visita os Estúdios Correia!
O espólio da Foto-Carvalho encontra-se hoje à guarda desta equipa que continua ativa como estúdio de fotografia.
Aproveita para marcar uma sessão, ou – se tiveres em casa retratos antigos da Foto-Carvalho – procura o número no verso e encomenda uma ampliação a partir do negativo original.
Agradeço ao Paulo Correia e à sua família por me permitirem estudar esta coleção única.






























