Negativos em arquivo: preservar o invisível
- ccconservacao
- há 7 dias
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No Dia Internacional dos Arquivos, celebramos não apenas os espaços que guardam documentos, mas também o trabalho continuado de quem cuida, interpreta e dá significado ao património que nos chega do passado. Entre papéis, mapas, registos sonoros e objetos visuais, os arquivos fotográficos ocupam um lugar particular: lidam com imagens que moldaram a nossa memória coletiva, mas muitas vezes a sua materialidade passa despercebida.
Este texto parte de uma investigação dedicada ao retoque fotográfico em negativos de gelatina seca na primeira metade do século XX. Uma prática tantas vezes invisível, mas essencial para compreender como as imagens foram pensadas, construídas e preservadas. Neste excerto, refletimos sobre o papel dos arquivos e dos profissionais da conservação na valorização destes acervos – e sobre o que está ainda por fazer.
Ver o negativo como objeto

“As coleções de negativos são a maioria em muitos arquivos históricos portugueses. A preservação destes objetos depende também da sensibilização do público.”
Nos arquivos fotográficos, os negativos são frequentemente tratados como meros intermediários entre o gesto do fotógrafo e a imagem impressa. No entanto, em muitos casos, são o único vestígio original do processo criativo. Mais do que simples matrizes, os negativos revelam escolhas, correções e intenções – e são, por si só, objetos culturais com valor histórico e técnico.
A prática do retoque fotográfico nos negativos, feita com lápis, corantes ou vernizes, introduz novas camadas de leitura. Revela o desejo de controlar a imagem final, de adequá-la a padrões estéticos, sociais ou técnicos. Retocar era (e é) uma prática de precisão e intenção. Ao identificar e compreender essas intervenções, ganhamos acesso a uma história mais rica da fotografia – uma história que passa pelo gesto, pela oficina, pela adaptação a um olhar.
“Para aprender sobre o retoque e sobre a materialidade da fotografia, não basta ler os manuais, consultar os registos históricos ou olhar para as imagens digitais. É preciso observar, na mão, o objeto fotográfico, uma coleção inteira ou pelo menos uma amostra representativa.”
É nesta dimensão que os arquivos assumem um papel determinante. São lugares de preservação, mas também de acesso e descoberta. Permitem observar os negativos como objetos únicos, com marcas de uso, alterações e reinvenções. A valorização da coleção passa pelo contacto direto, pela análise cuidada, pela documentação rigorosa – e por estratégias de mediação que tornem visível o que tende a permanecer escondido.
A exposição como lugar de prática e discurso
Durante esta investigação, procurou-se contrariar a invisibilidade das práticas de retoque e dos negativos em arquivo. Um exemplo foi a exposição Memória Recapturada, dedicada ao estúdio Foto-Carvalho, ativo em Estremoz entre 1936 e 2000. Esta exposição não se limitou a mostrar imagens – apresentou os negativos, o mobiliário do estúdio, uma câmara fotográfica, e recriou o ambiente de trabalho onde o retoque era parte essencial da prática fotográfica.
“Foi feita uma tentativa modesta de mostrar o negativo como parte do processo do fotógrafo, e não apenas como uma imagem. [...] A exposição apresentou um negativo numa mesa de retoque com iluminação transmitida e várias chapas em prateleiras de secagem, juntamente com objetos e livros do estúdio.”

Mais do que apresentar um “antes e depois”, o objetivo era recordar a experiência do estúdio fotográfico enquanto espaço de produção técnica e cultural. Ao tornar visível o negativo e o retoque, valorizou-se o trabalho invisível, a mão que ajusta e corrige, a construção silenciosa da imagem ideal.
Representar o negativo na era digital

Nos dias de hoje, os arquivos enfrentam um novo desafio: a mediação digital. A digitalização massiva dos acervos permitiu democratizar o acesso às imagens, mas, muitas vezes, à custa da compreensão da sua materialidade. Quando os negativos são convertidos em positivos digitais sem contextualização, não só perdem a sua identidade física como podem ser erroneamente interpretados como imagens “finais”, distantes do processo fotográfico que lhes deu origem.
“As coleções de negativos são frequentemente apresentadas online como positivos digitais convertidos, distorcendo a interpretação das técnicas dos fotógrafos, da cultura visual da época e da própria história da fotografia.”
É urgente repensar estas estratégias de representação. Os conservadores e arquivistas não são técnicos de imagem nem web designers, mas são os que conhecem intimamente os objetos. Devem, por isso, colaborar com os departamentos de digitalização e comunicação, procurando formas mais rigorosas e inovadoras de representar os negativos – enquanto negativos – e de contextualizar o seu lugar na história e na prática da fotografia.
Preservar o gesto, não apenas o vidro
A história da fotografia é também a história de gestos técnicos e escolhas subjetivas. O retoque, embora muitas vezes associado à falsificação ou manipulação, é, na maioria dos casos, uma tentativa de ajustar a imagem às possibilidades do suporte e às expectativas do tempo. Preservá-lo é reconhecer que a fotografia nunca foi apenas registo automático: sempre implicou interpretação, intenção, e uma certa dose de artifício.
“O retoque existe como mais uma etapa do processo fotográfico, é parte do objeto e, por isso, precisa de ser preservado.”
Remover ou ignorar essas camadas de intervenção compromete a integridade do objeto e apaga traços fundamentais do trabalho do fotógrafo. Por isso, o retoque deve ser estudado, documentado e comunicado – não como curiosidade técnica, mas como elemento constitutivo da fotografia.
Arquivar é também interpretar
A conservação dos negativos retocados coloca em evidência um dos princípios centrais do trabalho em arquivo: a necessidade de interpretar. Ao contrário do que por vezes se pensa, arquivar não é apenas guardar. É organizar, investigar, contextualizar. É compreender a relação entre objeto, imagem e intenção. É tornar acessível sem simplificar. É permitir múltiplas leituras sem apagar o original.

“Preservar a intenção pode ser tão importante quanto preservar o objeto.”
Neste Dia Internacional dos Arquivos, queremos sublinhar esta dimensão: a do arquivo como espaço de investigação, responsabilidade e mediação. Um espaço onde se preservam vestígios, mas também onde se constroem narrativas. E onde o retoque fotográfico – tantas vezes esquecido – nos obriga a olhar com mais atenção para aquilo que parece invisível.
Continuar a acompanhar
Este é apenas um dos muitos temas que emergiram da investigação sobre o retoque fotográfico em negativos históricos portugueses. Neste espaço, continuaremos a partilhar reflexões, exemplos e histórias que revelam outras dimensões da fotografia enquanto objeto técnico, cultural e material.
Acompanha-nos nesta viagem pelos arquivos, pela história da imagem e pelos gestos escondidos que moldaram a forma como vemos o passado.
A investigação por trás deste texto deu lugar a uma tese de Doutoramento que pode ser consultada aqui: http://hdl.handle.net/10400.14/39634
(temporariamente dá erro estou a tratar de corrigir)